Apesar de ser um dos mais prestigiados e antigos produtores mundiais de vinho, demoramos para trazer a França como tema de um evento da Confraria Viva o Vinho. Por outro lado, é preciso ter em mente que comprar um vinho francês não é tarefa simples para os brasileiros. Além do preço da grande maioria ser um tanto elevado, a imensa variedade de regiões e sub-regiões, o fato de geralmente não trazer as uvas no rótulo e as denominações completamente diferentes de outros países são alguns dos fatores que afastam grande parte das pessoas dos vinhos franceses.
Mas é impossível falarmos de vinho sem visitarmos a França pelo menos uma vez. Por isso, foi em 2016 que o Viva o Vinho organizou o seu 10º Evento da Confraria, realizado de 7 a 9 de outubro, estando focado exatamente em Bordeaux – uma das regiões mais importantes do mundo na produção de vinhos. Como sempre, fizemos uma imersão na região para chegarmos ao nosso evento conhecendo um pouco mais sobre os vinhos franceses e, por isso, escrevemos mais de um post, devido ao grande volume de informações. Vamos começar nossa viagem?
Tradição e qualidade
Não é por acaso que, quando se busca uma referência em termos de vinho de qualidade, França é o primeiro nome que vem à cabeça. Uma série fatores contribuem para isso: a grande variedade de climas e solos de seu vasto território (a França é o segundo maior país da Europa, atrás apenas da Rússia); uma gama de variedades de uvas de alta qualidade, caráter e adaptabilidade; e sua longa história ligada ao vinho.
Dentre as diversas regiões do país produtoras de vinho, Bordeaux é, sem dúvida, a de maior prestígio e, ao mesmo tempo, a que abriga o maior número de vinhos de alta qualidade. Posicionada no litoral sudoeste da França, Bordeaux é uma região entremeada pelos rios Dordogne e Garone, que, ao se encontrarem, dão origem ao Gironde (maior e mais influente que os demais). Seu próprio nome faz referência aos rios (Bordeaux deriva da expressão francesa “au bord de l’eau”, que significa “ao longo das águas”).
Nenhuma região vinícola do mundo produz tantos vinhos de alta qualidade como Bordeaux. A maioria deles são tintos, mas sub-regiões como Sauternes e Barsac produzem vinhos brancos consagrados em todo o mundo.
Terroir perfeito
Talvez a abundância de águas, tanto dos rios quanto do mar, seja um dos maiores atributos de Bordeaux. Além de amenizar o clima da região, as águas provêm melhor ambiente para o desenvolvimento das videiras.
Um antigo ditado de Bordeaux diz que os melhores vinhedos “podem ver o rio”, regiões onde o solo é formado por cascalho e pedras, perfeito para a drenagem da água. A maioria dos principais produtores bordaleses está exatamente nessas localidades.
Os vinhedos de Bordeaux são, em geral, planos e estão em baixa altitude, e os solos bem drenados. Entretanto, a composição desse solo apresenta variações, conforme a localização. E aí começam a ser refletidas as diferenças entre os vinhos de cada “margem”.
Na margem esquerda do Garonne e do estuário do Gironda predominam os solos arenosos misturados a cascalho (“graves”, em francês, que dá nome a uma região de Bordeaux cujo solo possui um grosso substrato de cascalho). No outro lado, ao longo da margem direita do Dordogne e do Gironda, a variedade é maior: argila, calcário, areia e cascalhos aparecem em diferentes trechos e muitas vezes se misturam. Já entre os rios Garonne e Dordogne, na área conhecida como Entre-deux-mers (“entre dois mares”), a composição do solo é basicamente argilo-calcária – um solo mais fértil que acaba prejudicando as videiras.
Devido à influência da corrente do Golfo, quente, e à proximidade do amplo estuário do Gironda, o clima é bastante ameno, temperado oceânico, sob medida para a produção de vinhos que se destacam mais pela sutileza do que pela potência.
Bordeaux beneficia-se, ainda, da Corrente do Golfo, que traz águas quentes do Caribe para o norte da Europa, estendendo a estação de crescimento das plantas e amadurecimento dos frutos, reduzindo o risco de incidência de geadas. Em contrapartida, a proximidade do Oceano Atlântico eleva a incidência de chuvas e umidade. Por isso, embora a floresta de Landes e as dunas de areia da costa protejam as áreas de vinhedos dos ventos mais fortes e ajudem a estabilizar a temperatura, a variação das safras é um fator importante quando falamos de vinhos bordaleses, embora os grandes produtores consigam mais homogeneidade de qualidade de seus vinhos por meio da rígida seleção das uvas.
A umidade é mais elevada nas regiões à beira dos rios próximas à floresta de Landes, como Sauternes: graças a isso, as uvas brancas são atacadas pelo fungo Botrytis cinérea, responsável pela desidratação das uvas que produzem o vinho doce mais valorizado do mundo.
Mais de 2 mil anos de história
A história dos vinhos em Bordeaux data de cerca de 2 mil anos atrás, tendo seus primeiros registros no tempo dos romanos, quando algumas vinhas foram plantadas na região. Mas os vinhos de Bordeaux entraram para o hall da fama na Idade Média, quando a duquesa francesa Eleanor de Aquitânia casou-se com o rei da Inglaterra, Henrique II. Essa aliança viria a abrir a região de Bordeaux para o mercado inglês, estimulando seu rápido desenvolvimento e, anos mais tarde, ajudando o mundo a descobri-la.
O primeiro produtor de vinhos de Bordeaux de que se tem notícia foi o poeta latino Décimo Magno Ausônio, que viveu aproximadamente entre os anos 310 e 395. Foi Ausônio o primeiro autor a mencionar o cultivo de videiras e enaltecer os vinhos na região (o Château Ausone foi nomeado em sua homenagem).
Registros históricos indicam que, naquela mesma época, a viticultura teria se consolidado no local e nos arredores, sob domínio de Roma. Mais tarde, quando caiu o Império Romano, pouco se soube sobre Bordeaux. A retomada se deu no reinado de Carlos Magno, que teria tido grande interesse em Fronsac. A partir do século XI, com a expansão econômica da Europa, a demanda por vinho se intensificou. O novo porto de La Rochelle, no norte de Bordeaux, trouxe riqueza para a região e, no século XII, tanto a produção quanto o comércio de vinhos aumentaram.
Entretanto, como falamos antes, a grande virada de Bordeaux deu-se sob domínio inglês. Em 1152, Eleonora da Aquitânia, filha de Guilherme X, casou-se com Henrique de Plantagenet, coroado como Henrique II, em 1154. Os territórios de sua esposa haviam sido adquiridos por Henrique II e, com isso, boa parte do oeste da França ficou sob administração inglesa (situação revertida apenas em 1453, com o final da Guerra dos Cem Anos). Para conquistar a confiança da população local, o governo inglês favoreceu as vendas de vinhos de Bordeaux no mercado inglês, dando isenção ao imposto de exportação cobrado no porto. Com isso, os vinhos da região conquistaram o mercado da Grã Bretanha, que comprava mais de um quarto do total da produção.
Mesmo com a reconquista da região pela França, em 1453, o comércio de vinho com a Inglaterra continuou, já que o “claret” – nome dado pelos britânicos ao vinho de Bordeaux por sua coloração rubi clara – havia conquistado reputação. Com o fim do domínio inglês, os comerciantes holandeses passaram a dominar a compra do vinho da região. Foram os holandeses, aliás, os responsáveis pela drenagem dos pântanos que dominavam o Médoc, no século XVII. A mudança no gosto dos consumidores ingleses, que queriam vinhos mais concentrados, e a ocupação destas terras drenadas por vinhedos definiram a identidade atual do vinho tinto bordalês.
A segunda metade do século XIX foi bastante agitada na região: enquanto surtos de míldio e filoxera derrubavam a produtividade e a qualidade, a classificação de 1855 feita pelo Syndicat de Courtiers estabelecia os melhores vinhos de Médoc e Graves, estabelecendo denominações que duram até hoje praticamente inalteradas. A delimitação do departamento da Gironda e o estabelecimento da Appellation Controlée em Bordeaux só viriam depois, em 1911 e 1936.
Mas isso já é assunto para outro post. Aguardem!