Uma das informações mais tradicionais e ao mesmo tempo complicada para nós, brasileiros, entendermos sobre os vinhos de Bordeaux é a sua classificação. Quem conhece um pouco mais de vinhos sabe que um Grand Cru é excelente – mas o que significa exatamente?
Por meio dessa classificação pode-se compreender melhor a história de Bordeaux.
Vale lembrar que, durante muito tempo, os vinhos das diversas propriedades eram vendidos em barris sem identificação, no máximo com a indicação da cidade ou região de onde vinham. E os produtores bordaleses foram uns dos primeiros a entender a importância do marketing em torno de seus nomes, criando, no século XVII, o conceito de valorizar os vinhos de determinado produtor.
Com o passar do tempo, o paladar dos ingleses – um dos mercados-chave para os franceses – foi incrementando e eles se tornaram mais precisos em relação ao local em que os vinhos de melhor qualidade eram produzidos.
De uma visão geral de Bordeaux, passaram a focar na sub-região de Médoc e, mais tarde, a levar em conta também o produtor em questão. E, neste quesito, quatro se destacavam: Château Margaux, Château Latour, Château Lafite e Château Haut-Brion (o único que não ficava no Médoc, mas sim em Graves, e que foi o primeiro a fazer fama no mercado inglês). Por conta do altíssimo nível destes vinhos – e também seus preços descomunais – eles ficaram conhecidos como vinhos de “primeira propriedade”.
Outras vinícolas começaram a notar como as primeiras estavam dando certo financeiramente e como valia o esforço de se empenhar na qualidade do vinho. Elas conseguiram criar um reconhecimento similar e ficaram conhecidas como “segundas propriedades” – afinal, seus preços não eram tão altos quanto os das primeiras.
Em 1787 já se tinha definido uma terceira denominação, das “terceiras propriedades”. O sucesso comercial dessa classificação fez com que fosse criada ainda uma quarta classe. Por volta de 1850, havia cinco classes bem definidas nessa hierarquia comercial, abrangendo cerca de 60 produtores.
Finalmente, em 1855, ocorre a Exposição Universal de Paris, que reunia itens de toda a França e do mundo. Para a ocasião, Napoleão III pediu a cada região vinícola que estabelecesse uma classificação de seus vinhos. Foi confiado à Câmara de Comércio e de Indústria (CCI) de Bordeaux o processo envolvendo os vinhos da região.
O que vale mesmo é o preço
O sistema de ranqueamento dos vinhos de Bordeaux foi feito pelos negociantes e foi baseado em resultados comerciais dos vinhos de cada propriedade durante longos períodos de tempo e não na qualidade do vinho apresentado na Exposição Universal ou mesmo da safra anterior – tanto que muitos sequer enviaram vinhos para serem provados na feira.
O que contava era a tradição, a reputação construída em torno dos valores obtidos pelos produtos durante anos. Assim, as categorias foram definidas por faixas de preço, o que fez com que os consumidores já tivessem uma ideia dos valores que seriam cobrados pelos vinhos de cada propriedade. A classificação, na época, contava com 58 propriedades, classificadas em Premiers Crus, Deuxièmes Crus, Troisièmes Crus, Quatrièmes Crus e Cinquièmes Crus.
Classificações “não oficiais” dos principais vinhos de Bordeaux sempre existiram antes da lista apresentada em 1855. Muitos grandes enófilos da história fizeram suas próprias classificações dos melhores produtores e um dos mais célebres a citar os grandes châteaux em seus apontamentos foi Thomas Jefferson, quando foi embaixador norte-americano na França em 1787. O futuro presidente dos Estados Unidos ficou fascinado com os vinhos ao viver no país europeu. Ao visitar Bordeaux, fez uma lista dos produtos que mais gostou e ela continha vários dos nomes que ficaram eternizados na classificação de 1855.
A lista oficial sofreu pouquíssimas alterações. A primeira ocorreu um ano após a classificação, em 1856, quando o Château Cantemerle entrou para os Cinquièmes Crus. Em 1970, houve a eliminação do Château Dubignon, vendido e incorporado ao Château Malescot St. Exupéry. Depois disso, em 1973, a mais notória inclusão: Château Mouton Rothschild, até então um Deuxièmes Cru, conseguiu, devido à influência política e econômica de seu proprietário, entrar para o seleto grupo dos Premiers Crus, por decreto presidencial de Charles de Gaulle.
A classificação de 1855 alcançou uma autoridade e longevidade e, mesmo com outras versões – efêmeras –, apenas essa lista se mantém válida até hoje. Atualmente, ela conta com 61 propriedades.
Com a classificação – e na verdade, por causa dela – as décadas de 1860 e 1870 ganharam o nome de “A Idade de Ouro”, pois os produtores obtiveram lucros incríveis. A época em si não era nada promissora: o oídio, doença provocada por um fungo, assolava a região e trazia escassez aos vinhos, o que automaticamente aumentava seus preços.
A construção de uma ferrovia, que ligava Bordeaux à Paris e fora projetada como um escape para o porto marítimo, não foi muito útil para a região mas, mesmo assim, colaborou para os mercados de Paris e cidades da Alemanha e Bélgica.
O efeito mais interessante dessa ligação foi o aumento do número de parisienses que iam visitar Bordeaux. Muitos deles, inclusive, após conhecer a região, se interessaram em comprar terras por ali. Bordeaux se tornou ainda mais glamorosa, a ponto de muitos chamarem a região de uma “extensão da Champs-Élysées”, em menção à avenida mais famosa de Paris.
Como ficaram os vinhos “normais”
Claro que nem só de Crus vive Bordeaux. Aliás, os vinhos “genéricos” respondem por 45% da produção local. Mas como são denominados esses vinhos? Como podemos reconhecê-los ao comprarmos um vinho de Bordeaux.
Só pelo fato de ser produzido em Bordeaux, o vinho já segue uma série de regras, que são mais rígidas quanto mais alta for a sua classificação. A seguir comentamos um pouco sobre cada uma delas.
Appellation genérica
Um vinho que recebe a Appellation Bordeaux Contrôlée (Bordeaux AC ou AOC) pode ser produzido em qualquer parte da região, desde que use as uvas permitidas e tenha rendimento de, no máximo, 55 hl por hectare. Além disso, o produto final deve ter um teor alcoólico entre 10° e 13°. Aqui podemos encontrar alguns vinhos de boa qualidade, com preços relativamente acessíveis, que devem ser tomados jovens, entre três a quatro anos.
Caso o rendimento seja inferior a 50 hl/ha, o vinho pode ser enquadrado na classificação Bordeaux Supérieur, um degrau acima. São vinhos da mesma região, mas com maior exigência de qualidade, mesma norma de teor de álcool e exigência de envelhecer por pelo menos 9 meses antes de ser comercializado. São vinhos, normalmente, de maior qualidade, com uma enorme variação de preços. Mais estruturados e concentrados, são fechados quando jovens, podendo ser guardados por cerca de 6 a 7 anos.
Os espumantes também ficam na categoria genérica, com o nome Crémant de Bordeaux.
Os vinhos de Appellation Genérica correspondem a cerca de 45% do total produzido na região.
Appellation regional
A região de Bordeaux apresenta diversos tipos de solo. Outros fatores, como proximidade do mar e insolação também são importantes para definir a personalidade do vinho. Assim, ao se restringir a área da qual podem ser colhidas as uvas, a probabilidade de se obter um vinho com mais características do terroir aumenta. Por isso, as denominações regionais agrupam áreas com características de solo, microclima, uvas e tipos de vinho produzidos similares.
Appellation comunal
Algumas das denominações regionais incluem classificações ainda mais específicas, de acordo com a comuna ou distrito de origem das uvas usadas. Logo, espera-se que um vinho de Appelation Comunal seja de alta qualidade – até porque o preço certamente será alto. Alguns dos grandes châteaux de Bordeaux possuem uma reputação tão alta que acabaram nomeando toda uma comuna: o Château Margaux, por exemplo, é classificado como Appellation Margaux Contrôlée.
Os Crus Classés
Dentro das AOC Comunais distinguem-se os vinhos de qualidade excepcional, reconhecidos oficialmente, que são classificados como Crus de diferentes níveis (de 1 a 5). O Cru sempre recebe a AOC Comunal da sub-região na qual se localiza e é elaborado por um único vinicultor cuja propriedade denomina-se, geralmente, Château. Por exemplo, na AOC Pauillac existem dezenas de Châteaux, mas os vinhos do Château Latour, do Château Mouton-Rotschild e do Château Lafite-Rotschild são considerados os três melhores Crus, pois são produzidos nos melhores terroirs de Pauillac.
Embora a relação de vinhos classificados como crus na lista de 1855 tenha ajudado a reorganizar as avaliações de preços e o mercado de exportações de vinhos da região, muitos produtores saíram descontentes com o resultado. Isso porque a seleção dos vinhos Crus Classés foi feita apenas entre aqueles produzidos nas regiões de Médoc e de Sauternes.
Hierarquia dos crus classés do Médoc:
- 5 Premiers (4 do Médoc e 1 de Graves)
- 14 Deuxièmes (ou Séconds)
- 14 Troisièmes
- 10 Quatrièmes
- 18 Cinquièmes
Os Crus Bourgeois e outras classificações
Em oposição às regras rígidas da classificação de 1855, o sindicato de produtores do Médoc criou a classificação dos Crus Bourgeois (crus burgueses, já que os classés seriam “aristocráticos”) em 1932 para tentar reverter os maus resultados das vendas. A ordenação seria revista algumas vezes, tendo sido consolidada sua atual estrutura entre 1966 e 1978.
Foram auditados 490 châteaux e classificados 247 em ordem de qualidade baseado no terroir, vinificação e outros quesitos técnicos. Se você encontrar um rótulo em que conste Cru Bourgeois, já saberá que este vinho é produzido no Médoc, que fica na margem esquerda e tem como cepa preponderante a Cabernet Sauvignon.
Os vinhos dentro dessa hierarquia podem ser classificados como crus Bourgeois Exceptionnels, Grands Crus Bourgeois ou Crus Bourgeois, em ordem decrescente de importância, embora no rótulo todos só possam usar o adjetivo mais simples – Crus Bourgeois. Se por um lado a qualidade de muitos crus classés oscilou em mais de um século e meio desde a classificação, é possível encontrar crus bourgeois desde medianos, pouco melhores que um Bordeaux genérico, até ótimos, superando em qualidade alguns crus classés de menor qualidade.
Existe também uma nova classificação criada por Decreto Ministerial em janeiro de 2006, chamada Crus Artisans, que contempla 44 vinícolas familiares que cuidam de tudo: desde o plantio, passando pela vinificação até a venda de seus próprios vinhos.
Já Saint-Émilion, na margem direita, criou sua própria classificação em 1955, por iniciativa do sindicato local. Mais sucinta e objetiva, ela divide os vinhos em Grand Crus Classés (estes divididos em Premier Grand Cru Classé A e B e Grand Cru Classé) e Grand Crus. Ela é revista a cada 10 anos.
Na outra margem, vizinha ao Médoc, a região de Graves selecionou em 1959 seus 17 châteaux merecedores de classificação – 14 vinhos tintos e 10 brancos são considerados classés.
E o Château Petrus, um dos vinhos mais caros do mundo, como ele se encaixa nessas classificações? Esta vinícola está situada na AOC Pomerol, que não tem nenhuma classificação especifica. Então ele é, “simplesmente”, um AOC Pomerol. Na prática, é considerado como um sexto Premier Cru, um verdadeiro ícone no mundo do vinho.
Já sabe ler um rótulo?
Agora que você já aprendeu um pouco mais sobre as classificações dos vinhos de Bordeaux, fica mais fácil ler um rótulo de vinho daquela região, certo? Em todos eles você vai encontrar a classificação: Bordeaux Superiéur, Cru, Grand Cru, Cru Borgeois, e por aí vai.
Outra palavra encontrada em praticamente todos os rótulos de vinhos de Bordeaux é Château. E a explicação é simples. Como a maioria dos vinhedos estava localizada ao redor de castelos (châteaux, em francês), as vinícolas acabaram sendo batizadas com seus nomes. Atualmente nem todas as vinícolas têm castelos próprios, mas mesmo assim são denominadas châteaux.
Mis en Bouteille au Château – o que é isso? Significa que as uvas daquele vinho foram cultivadas e vinificadas no próprio château. Ao pé da letra, é “engarrafado no château”, ou seja, quando todas as etapas da produção do vinho passaram pelos cuidados do próprio vinicultor.
Os franceses valorizam muito essa qualidade, pois ninguém melhor que o vinicultor para conhecer toda a tipicidade de seu próprio terroir.
As uvas raramente aparecem no rótulo de um vinho de Bordeaux. Cada região utiliza uma combinação específica, cujas proporções mudam de safra para safra. Assim, a forma mais fácil de saber que uvas o vinho leva é conhecendo um pouco sobre a região de onde ele vem.
Bom, hoje aprendemos um pouquinho mais sobre os vinhos de Bordeaux. Na minha opinião, a parte mais complicada, que é a classificação dos vinhos. Nos próximos posts, vamos ver as diferenças entre margem esquerda e margem direita e as consequências na produção dos vinhos. Fiquem com a gente!