Desde ser dito que a atividade vinícola é coisa de homens até que o sexo feminino não percebe destas bebidas, inúmeros são os mitos que as mulheres ouvem quando trabalham no universo dos vinhos. Na verdade, apesar desta indústria se apresentar tipicamente masculina para muitos, as tradições e os preconceitos seculares têm sido contrariados e, atualmente, as mulheres já vencem num mundo de homens, assumindo papéis de destaque como enólogas, produtoras, críticas ou sommelières!

As portas que foram abertas

Ousadas personalidades criaram as oportunidades para que hoje em dia as mulheres consigam fazer a diferença na indústria dos vinhos, arrecadando prémios e fazendo valer as suas aptidões. Contudo, desengane-se quem acha que este percurso foi simples… na verdade, foi bem demorado.

Acredita-se que um dos primeiros vestígios das mulheres ligadas à indústria do vinho remonta há milhares de anos no Egito. Aqui foram encontrados desenhos de mulheres não só a beber vinho, mas também a trabalhar na vinificação. Porém, o mesmo não acontecia nas civilizações gregas e romanas, nas quais as mulheres eram proibidas de consumir esta bebida alcoólica.

Mais tarde o panorama foi invertido e a feminilidade no mundo do vinho passou a ser assegurada. Entre as figuras de destaque temos Barbe Nicole Clicquot Ponsardin que, após o falecimento do seu marido por volta de 1805, assumiu o comando da vinícola familiar Veuve Clicquot e transformou por completo a empresa, projetando-a não só para o mercado estrangeiro, mas também tornando-a num dos maiores símbolos mundiais no que diz respeito ao champagne.

De facto, graças a antecessoras como esta, as mulheres encontram-se rendidas ao mundo do champagne em todos os seus domínios e, de acordo com dados divulgados pela BBC, estima-se que atualmente cerca de 60% dos alunos de enologia de champagne sejam do sexo feminino.

Barbe Nicole Clicquot Ponsardin | Viva o Vinho

Barbe Nicole Clicquot Ponsardin (Fonte: Wikipédia)

Ferreirinha | Viva o Vinho

Ferreirinha (Fonte: Wikipédia)

Já por Portugal nomes como Antónia Adelaide Ferreira, carinhosamente apelidada de Ferreirinha, fazem ecoar.

Foi por volta do século XIX que esta figura mudou por completo a indústria do vinho em Portugal, momento em que tomou as rédeas do negócio familiar e pelas terras do Douro se dedicou à produção do vinho do Porto, vindo a destacar-se pela introdução de novas técnicas no processo de vinificação e produção.

Também o seu carácter serve de inspiração, ficando conhecida pela sua preocupação não só com as adegas, mas principalmente com os trabalhadores.

Já os dias de hoje continuam a inspirar várias mulheres a entrar neste universo graças a personalidades como Jancis Robinson.

Considerada a mulher mais importante e respeitada do mundo dos vinhos da atualidade, para além de crítica e autora de diversos livros e de um website sobre a temática, Jancis destaca-se por terras de sua majestade ao assumir-se conselheira da adega da rainha Isabel II, auxiliando na seleção dos vinhos da mesma. Para além do mais, inspira pelo seu título de Master of Wine, sendo a primeira jornalista do sexo feminino a obter tal distinção.

É graças a mulheres que foram dominando o mundo dos vinhos que o progresso aconteceu. De facto, empreendedoras e com grandes perspetivas de negócio, mulheres do mundo inteiro renderam-se aos néctares favoritos de Baco.

Compra de vinho está nas mãos das mulheres

Afirma-se que as mulheres são quem mais tem entendimento deste universo, já que são as que mais compram e não têm medo de arriscar na hora de escolher a bebida ideal. Os números não deixam mentir e na maioria dos países há um padrão: as mulheres são quem mais adquirem vinho.

CVR Tejo | Viva o Vinho

Os Estados Unidos são exemplo disso, já que 57% do consumo desta bebida parte do sexo feminino. Em Espanha e na França os números são ainda mais significativos, correspondendo a 78% e 60%, respetivamente. Em contrapartida, a aquisição através de meios online também tem vindo a aumentar e só no Brasil 51% do e-commerce de vinhos advém de mulheres.

Por outro lado, as categorias de vinhos mais adquiridos por mulheres surpreendem, apresentando-se um claro destaque para os vinhos orgânicos, sustentáveis e cujas enólogas sejam do sexo feminino.

Contudo, mais do que consumidoras, as mulheres necessitam ser encaradas como figuras de negócios, incluindo no setor vinícola. A assumir cada vez mais posições de distinção nesta indústria, as mulheres portuguesas não são exceção e também elevam a vinicultura nacional a um novo patamar.

Ir além de adquirir e degustar vinho

Revelando uma clara tradição vinícola e um profundo contributo histórico para este setor, de ano para ano Portugal tem vindo a arrecadar novos mercados para exportação. De facto, os vinhos portugueses não só conquistam as terras lusitanas, mas também países dos quatro cantos do globo.

Prova disso foi a exportação de vinho no ano de 2020 que, de acordo com dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), cresceu 5,3% em volume perante o período homólogo do ano anterior. Contudo, uma parte substancial deste êxito internacional deve-se exatamente às mulheres portuguesas, que todos os dias contribuem e fazem a diferença neste setor.

Enólogas e Produtoras

A voz do vinho português também é no feminino e no estender de todo o território nacional várias propriedades devem grande parte do seu sucesso às suas trabalhadoras que, consequentemente, ocupam os principais lugares em cursos universitários relacionados com a temática.

Entre elas distingue-se Sílvia Canas da Costa que, caminhando sob os versos do poema “Impressão Digital” de António Gedeão, entrou neste mundo de forma muito natural, no momento em que o seu pai a convidou a fazer parte do projeto da Quinta da Lapa.

Hoje a sua maior inspiração feminina é exatamente a mãe, quem lhe ensinou o gosto pela comida acompanhada de um bom vinho e à qual prestou homenagem através do vinho Nana. Porém, acima de mulher, Sílvia sente-se gente e, acreditando na igualdade de gênero, à medida que foi crescendo as “diferenças e restrições foram impostas, o que foi sempre muito difícil de aceitar”.

Sílvia Costa | Viva o Vinho

Sílvia Canas da Costa

Luísa Paciência | Viva o Vinho

Luísa Paciência

Também Luísa Paciência é uma figura de destaque no universo dos vinhos portugueses e, tal como Sílvia, a entrada neste setor foi muito orgânica, já que o vinho sempre foi uma tradição familiar e, por isso, optou pelo curso de agronomia de maneira a ter a formação requerida para assumir a propriedade Casa Paciência. Acredita que a indústria é inclusiva e, fazendo questão de promover a diferenciação, nasceu uma homenagem através do vinho Mãe, uma produção totalmente dedicada ao público feminino e, em particular, às mães de família.

Pelo impulso que deu aos vinhos portugueses, a sua maior inspiração vem da Ferreirinha, uma “mulher extraordinária que já no século XIX estava à frente do destino do vinho do Porto”.

Porém, para se entrar no mundo do vinho não é necessária uma ligação familiar com o setor. Exemplo disso é Patrícia Santos, que viu na enologia uma oportunidade de ter alguma liberdade intelectual.

Com presença na enologia do Primado, do projeto Pereira de Melo, e com o vinho de autor “Rosa da Mata” em homenagem à sua avó, Patrícia coloca sentimento em tudo o que faz e, apesar de ter encontrado alguns entraves nos seus primeiros trabalhos por ser mulher, afirma que as mulheres têm que “trabalhar mais para terem as mesmas janelas de oportunidade, mas todo este processo tem um tempo natural”.

Patrícia Santos | Viva o Vinho

Patrícia Santos

Filipa Trigo | Viva o Vinho

Filipa Trigo

Já Filipa Trigo abraçou o negócio dos vinhos de tal maneira que ingressou num mestrado executivo em Wine Business Management e, posteriormente, criou com o seu marido a House of Wines, uma empresa de distribuição que atualmente representa 14 produtores.

Apesar de no âmbito comercial sentir alguma resistência por parte de homens mais velhos, algo que hoje já encara com naturalidade e parte da própria educação e cultura, Filipa reconhece que no que diz respeito a análises de vinhos as mulheres têm sido elogiadas em relação à sua sensibilidade, boca e nariz apurados.

E enquanto muitas encontram a sua vocação na família ou no meio académico, Fernanda Zuccaro, da Quinta Alta, encontrou o seu caminho em meados de 2010 numa viagem ao Uruguai onde, na Vinícola de La Balleña, percebeu que o queria mesmo era fazer vinhos.

Hoje instala-se no Douro e são todas as mães, filhas e avós que trabalham neste setor que a fascinam: “No vinho português correm sangue, suor e lágrimas de mulheres. Mulheres menos favorecidas, que lutam diariamente no seu trabalho para viver. Não há glamour no mundo do vinho”.

Fernanda Zuccaro | Viva o Vinho

Fernanda Zuccaro

Chimene Geitoeira | Viva o Vinho

Chimene Geitoeira

Por sua vez, Chimene Geitoeira viu nos vinhos a oportunidade de criar e desenvolver produtos diferentes, algo que a encantou. O seu caminho começou no curso de tecnologia das indústrias agroalimentares e, atualmente, é uma cara de destaque da SIVAC. Chimene reforça que o facto de trabalhar há 26 anos neste ramo sempre se refletiu num bom acolhimento e em respeito.

Com a forte crença de que o estigma que a indústria é essencialmente masculina tem que terminar, já que se verificam cada vez mais mulheres no setor, acredita que “é fundamental o exemplo que damos a outras mulheres, evidenciando o prazer de degustar”.

Já Teresa Barbosa viu o gosto por este universo incutido pelo seu pai, produtor de vinhos. Um rosto da propriedade João M. Barbosa, Teresa acredita que a indústria já não é exclusiva há muito tempo e que, de facto, “ser-se mulher no mundo do vinho não só deixou de ser tabu, como até suscita algum interesse por parte de clientes mais conservadores que vamos conseguindo cativar”.

Entre as suas maiores inspirações destaca a enóloga Sandra Tavares da Silva; Caroline Zagalo, que trouxe uma sofisticação descontraída à sala da Quinta das Lágrimas; e, por fim, Francisca Van Zeller, um exemplo de reinvenção.

Teresa Barbosa | Viva o Vinho

Teresa Barbosa

Teresa Nicolau | Viva o Vinho

Teresa Nicolau

Mais uma propriedade que tem uma mulher de relevo na sua constituição é o Solar dos Loendros. Aqui podemos encontrar Teresa Nicolau, que se iniciou neste mundo em 1997, momento em que começou a sua formação académica na Escola Superior Agrária de Santarém. Inspirada por todas as mulheres que fazem parte desta indústria, para si o “lado feminino traduz rigor e algum embelezamento, o que permitiu ao setor crescer e mostrar o melhor que os vinhos têm”.

Afirma que Portugal tem um enorme potencial vitivinícola, no qual o papel das mulheres enólogas é fundamental, pois o lado feminino em conjunto com a enologia demonstra o verdadeiro potencial dos vinhos portugueses.

E se as mulheres vieram para ficar, quem o prova é Alexandra Mendes, enóloga e consultora nas regiões do Tejo, Alentejo e Lisboa, assim como a primeira presidente da Associação Portuguesa de Enologia e Viticultura em 40 anos. O seu percurso iniciou-se no curso de indústrias agroalimentares, que à época tinha um ramo especializado em vinhos.

Ao longo dos anos, deixou-se inspirar por nomes como o da Engenheira Maria Clara Roque Do Vale, uma das pioneiras na gestão e génese de uma das mais reconhecidas regiões vitivinícolas portuguesas: o Alentejo. Para si a indústria só se torna verdadeiramente inclusiva quando forem criados programas de competitividade e a vida familiar seja mais integrada.

Alexandra Mendes | Viva o Vinho

Alexandra Mendes

Anca Martins | Viva o Vinho

Anca Martins

Para Anca Martins, da Adega Casal Martins, a paixão também nasceu a partir da formação académica. Licenciada em engenharia do ambiente e biológica e, posteriormente, mestre em engenharia de viticultura e enologia/vinífera, o caminho começou com o aluguer de vinhas e a produção do primeiro vinho em 2014, intitulado de Cave do Gira.

Em relação ao sexo feminino neste universo afirma que “se no processo produtivo as mulheres estão a ganhar terreno com a obtenção de vários prémios, no consumo têm vindo a consolidar a sua posição pelo conhecimento do vinho nacional”. Contudo, reconhece que é necessário ultrapassar algum conservadorismo e preconceitos instalados no mercado consumidor.

Por outro lado, Rita Vidal cresceu com os aromas da adega muito presentes na sua vida, o que, aliado à paixão pela natureza e à vontade de dar continuidade ao projeto familiar Casal das Freiras, naturalmente desencadeou um interesse por este universo.

Inspirada por Ferreirinha e por todas as suas colegas de trabalho, acredita que “a mulher trouxe mais sensibilidade, outra dinâmica e graciosidade ao mundo dos vinhos, ajudando a fortalecer e inovar o setor”.

Rita Vidal | Viva o Vinho

Rita Vidal

Martta Simões | Viva o Vinho

Martta Simões (Créditos: Ricardo Almeida)

Por fim, Martta Reis Simões, da Quinta da Alorna, viu o seu caminho de forma muito espontânea, já que os seus avós eram agricultores e o seu pai um dos membros fundadores da Confraria dos Enófilos da Estremadura, o que a motivou a ingressar na licenciatura em enologia.

Sentindo-se sempre respeitada no mundo do trabalho, considera que as mulheres possuem características que as fazem vencer facilmente as adversidades, o que se vai refletir num aumento de personalidades femininas nesta indústria.

Jornalistas e Críticas

Mulheres e vinho caminham de mãos dadas numa relação que prova que o sexo feminino não se deixa limitar, muito menos definir. Por isso, entre revistas e websites podemos encontrar inúmeras jornalistas e críticas que dedicam as suas palavras e, acima de tudo, a sua emoção, a estes néctares.

Renata Pacheco Tavares | Viva o Vinho

Renata Pacheco Tavares

Não podíamos falar de jornalistas e críticas, sem iniciarmos a nossa lista com a Renata Pacheco Tavares, fundadora do Viva o Vinho – juntamente com o Emanuel Alexandre Tavares – e apaixonada por comunicação. Com um percurso que passa pelo jornalismo, a Renata contribui diariamente para o universo do vinho através das suas histórias, marcadas pela sua essência e expertise na área, chegando mesmo a ser convidada para constituir o júri de inúmeros concursos.

Dada a sua paixão por este mundo, acredita que há sempre espaço para investir em conhecimento e formação. É por isso mesmo que, para além de possuir a qualificação WSET 1, está também a escrever um livro sobre vinhos portugueses (que muito em breve vai poder ler).

Entre estas mulheres também se destaca Sara Lledó, do website La Vida Ibérica, que se iniciou neste universo há cerca de 20 anos quando começou a trabalhar em comércio exterior para os vinhos da região da Estremadura espanhola. Motivada pelo estudo do produto, as viagens pelo mundo fora e as pessoas do mundo do vinho, este foi um palpite muito confortável para si desde o início.

Além do mais, acredita que o sexo feminino destaca-se porque, mais que somar, ele multiplica, o que demonstra que uma mulher pode trabalhar num mercado marcado pelo masculino, mesmo que tenha que provar o dobro.

Sara Lledó | Viva o Vinho

Sara Lledó

Mariana Lopes | Viva o Vinho

Mariana Lopes

Por outro lado, Mariana Lopes cresceu entre garrafas e conversas sobre vinho. O seu pai é jornalista de vinho há cerca de 30 anos, o que a motivou a estudar comunicação e tornar-se uma jornalista especializada na temática. Acredita que o mundo do vinho tem dois lados, o da mulher profissional e o da mulher consumidora, posições cada vez mais asseguradas e com mais espaço. Por sua vez, no que diz respeito a Portugal, afirma que a missão é acreditar no que é nosso, sem comparações.

Apontando falhas na comunicação deste universo, afirma que “ou temos gente que sabe do que fala, com conhecimento de facto, mas que não tem os recursos criativos ou até sensibilidade para comunicar para todos; ou temos pessoas que assassinam o tema, mas em formatos abrangentes e aparentemente interessantes”.

Também Valéria Zeferino escreve sobre vinhos e, com um percurso que se iniciou há cerca de uma década, sempre possuiu um grande interesse por questões sensoriais.

Partilha com Luísa Paciência e Rita Vidal a inspiração por Ferreirinha e, acreditando no conhecimento das mulheres, chega mesmo a afirmar que “um homem que queira impressionar uma mulher pelo seu conhecimento em vinhos tem que se certificar primeiro que a mulher em causa não sabe mais do que ele”.

Valéria Zeferino | Viva o Vinho

Valéria Zeferino (Créditos: Maria Malko e PRO MakeUp by Alena Goncalves)

Sommelières

Um estudo desenvolvido pela Food Quality and Preference no ano de 2018 veio comprovar o que há muito se especulava: as mulheres possuem o paladar mais apurado que os homens. Também os aromas para as mulheres se tornam surpreendentes já que, segundo dados divulgados em 2014 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a zona do cérebro que atua sobre os aromas é 50% mais avançada no sexo feminino.

Se se juntar o útil ao agradável, parece-nos que uma mulher num mundo de sommelières é incansável. E com o número de sommelières a crescer pelo mundo fora a olhos vistos, Portugal não podia ser exceção.

Teresa Gomes iniciou-se neste setor em 1997, quando recebeu o convite para ir trabalhar para uma loja de vinhos com a componente de bar, a sua área de formação.

Para Teresa, o vinho deve passar a ser entendido como uma forma de estar e conviver, não apenas como uma presença típica à mesa ou até com finalidades inebriantes.

Teresa Gomes | Viva o Vinho

Teresa Gomes (Créditos: Phelipe Parsane)

Durante séculos, mulheres entusiasmantes de todo o mundo aprofundaram conhecimentos, degustaram e produziram os seus próprios vinhos. Hoje em dia e mais do que nunca, o setor encontra-se liderado por mulheres que, inspirando outras a ingressar nesta indústria, provam diariamente que vieram para ficar num universo que outrora foi maioritariamente masculino. Afinal de contas, uma mulher pode ser tudo aquilo que ela quiser! Concorda?

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