Quando criança, Pedro Gil já vindimava, pisava uvas nos lagares e acompanhava todo o processo de produção de vinhos na quinta dos seus avós. No entanto, o seu sonho era ser jogador de futebol profissional, mas quis o destino que os vinhos se revelassem a sua verdadeira paixão. Atualmente, Pedro faz parte da equipa de uma das maiores adegas da região do Tejo.
Enólogo na Adega do Cartaxo há 25 anos, Pedro Gil é responsável por acompanhar todo o processo de vinificação dos 215 produtores associados. Formado em Tecnologia das Indústrias Agroalimentares e em Engenharia Alimentar, o enólogo iniciou o seu percurso em 1995 e, desde então, vem acompanhando as mudanças e crescimento de um projeto fantástico. Além disso, é atualmente o chefe da Câmara de Provadores da CVR Tejo.
Hoje, Pedro conta como tudo começou e revela alguns dos desafios inerentes à gestão de uma adega com tantos produtores e com uma produção que alcança os 10 milhões de litros anuais. Acompanhe a nossa entrevista e conheça a história por trás dos vinhos de Pedro Gil e da Adega do Cartaxo.
Como começou o seu percurso na enologia?
Considerando a enologia como o primeiro contacto que temos com o mundo do vinho, reconheço que o meu percurso começou com a influência dos meus avós paternos. Eles possuíam uma pequena propriedade com vinhas e uma adega muito tradicional, na qual eu, desde muito cedo, estive em contacto com todo o processo de fazer vinho. Desde as vindimas, a pisa a pé em lagares e tudo o que é inerente ao processo de produção. No entanto, não foi isso que me levou a escolher a enologia como profissão.
Você queria ser jogador de futebol, é verdade?
Sim, houve uma época em que comecei a jogar futebol federado e esse passou a ser o meu objetivo. A minha ideia era ter tirado um curso ligado ao desporto, embora tenha sido algo que acabou por se desvanecer. Como não éramos uma família abastada, estudar perto de casa era consideravelmente importante. Foi, então, que ingressei no curso de Tecnologia das Indústrias Agroalimentares – Ramo de Tecnologia do Vinho – na Escola Superior Agrária de Santarém. O curso tinha um plano curricular muito semelhante ao da UTAD, em Vila Real, e por isso costumo dizer que a escola me deu tudo aquilo que eu precisava para ingressar no mercado de trabalho. No entanto, em 2008, decidi voltar aos estudos e ingressei na licenciatura em Engenharia Alimentar, quando já me encontrava a trabalhar na Adega.
E hoje é enólogo na Adega do Cartaxo, correto?
Sim, estou cá há cerca de 25 anos. Durante o tempo em que estive a estudar, tive a oportunidade de realizar uma vindima no Cartaxo e mal terminei o curso, no ano de 1995, comecei logo a trabalhar na Adega. Tenho, ainda, duas assessorias em diferentes empresas: uma na região do Tejo e outra na região de Lisboa. No entanto, é na Adega que passo a maior parte do meu tempo.
Como é estar na mesma empresa há 25 anos? O que mudou neste período?
Eu diria que mudou tudo. Há 26 anos, o meu colega da área da gestão e do marketing encontrou uma realidade bastante característica ao que se passava nas adegas cooperativas. Os vinhos que existiam eram somente vinhos de entrada de gama, de uma ou duas marcas. Existia apenas um enólogo que vinha uma vez por semana, com o qual colaborei durante um ano. Só em 1998 é que assumi a enologia da Adega e a diretoria de produção. A partir daí começamos a trabalhar para colocar a Adega no mercado e obter maior reconhecimento. Foi um trabalho de equipa muito vasto e contamos com a colaboração de todos os associados durante estes anos.
E hoje a Adega do Cartaxo é um dos maiores produtores do Tejo, não é verdade? Quantos litros de vinho vocês produzem por ano?
Nós somos o maior certificador da região do Tejo, em termos de produção somos o segundo maior — logo a seguir à Adega de Almeirim — com produção de 10 milhões de litros por ano. Hoje o maior desafio é a área comercial, pois temos de fazer um pouco de tudo para vender, nomeadamente criar novos produtos e diversificar a nossa oferta. Isso acaba por influenciar bastante na logística da produção, com foco especial nos engarrafados. É um pouco mais difícil a gestão de tantos consumíveis, mas tudo é possível.
E como garantem a qualidade de tantos milhões de litros de vinho?
Temos uma política de classificação de uvas e de parcelas que foi desenvolvida ao longo dos anos, com o objetivo de valorizar as uvas. A uva tem um preço base, mas depois é valorizada com base na sua origem. A parcela é avaliada de acordo com determinados parâmetros e recebe uma pontuação. Essa avaliação é o que determina qual a uva que será utilizada para produzir os nossos vinhos. Dessa forma, conseguimos distinguir quais as melhores uvas para os topos de gama e por aí adiante.
Quantos sócios fazem parte da Adega do Cartaxo?
Atualmente são 215 sócios. A maioria dos associados pertencem à associação Viticartaxo que corresponde à Associação de Viticultores do Cartaxo e Azambuja. Essa associação possui técnicos ligados à viticultura que realizam a assessoria de toda a parte técnica. Somente na altura da vindima é que trabalham em conjunto conosco e, sob a minha orientação, fazem o controlo das maturações e uma estimativa de produção da vinha, para sabermos se haverá ou não um excesso de produção.
Tendo em conta todo o trabalho desenvolvido com diferentes produtores, qual o maior desafio que tem enquanto enólogo?
Em primeiro lugar, saliento o fato de ter de segmentar o potencial de cada terroir, de cada vinha e cada produtor. Foi preciso sensibilizar os sócios a este método de trabalho, pois a política de classificação tem de ser aprovada na Assembleia de Sócios. Mas a partir daí, o maior desafio é conseguir alcançar a homogeneidade dos lotes, uma vez que, na sua maioria, são sempre de anos diferentes e de diferentes origens. É preciso gerir toda a quantidade de produção disponível para que os vinhos mantenham a sua identidade e não se alterem ano após ano. Por esse motivo, digo que é mais complicado gerir os vinhos de entrada de gama, pois a produção é sempre mais elevada do que aquela que é destinada a vinhos de topo.
Para quantos países vocês exportam atualmente?
Os nossos mercados principais são a China, o Brasil e os Estados Unidos, assim como alguns países da União Europeia. Atualmente contabilizamos cerca de 20 países para os quais exportamos os nossos vinhos, mas estamos em processo de entrada em novos mercados na Ásia. Já em África, trabalhamos apenas com São Tomé e Moçambique.
Tem algum vinho que você gosta mais de produzir?
Normalmente essa é uma pergunta à qual tento sempre fugir, e para ser sincero, eu gosto de todos os vinhos desde que sejam bem feitos. É sempre desafiante criar um produto de gama superior, estruturar um determinado protocolo de procedimentos de vinificação para atingir um determinado fim. Os vinhos brancos são um pouco mais exigentes e necessitam de maior cuidado com a temperatura, além de requererem mais processos de produção. Além disso, são vinhos com mais instabilidades. No entanto, os tintos são sem dúvida mais desafiantes, talvez por serem vinhos que se guardam durante mais tempo.
Existe alguma casta que você goste mais de trabalhar?
Nos brancos gosto muito da Fernão Pires, pois é uma casta com uma versatilidade muito grande. Todos os nossos vinhos brancos – à exceção do Private Collection – têm Fernão Pires na sua composição, desde os espumantes aos colheita tardia. É uma casta com uma potencial enológico muito grande e é fantástico tudo aquilo que conseguimos fazer com ela. Mas naturalmente há outras que temos no nosso encepamento – de introdução mais recente – como Verdelho, Viosinho, Moscatel, Arinto, Sauvignon Blanc e Chardonnay. Pessoalmente gosto muito da Sauvignon Blanc e considero uma casta fantástica. É uma casta que não é fácil de trabalhar e precisa ser vinificada na altura certa, de acordo com o perfil que queremos para o vinho. Apesar de exigente, é uma casta que faz vinhos extraordinários, tanto em conjunto como em separado. No caso dos tintos, a Touriga Nacional, o Alicante Bouschet e o Syrah, têm dado origem a vinhos extremamente interessantes e com elevado potencial.
Durante os 25 anos que se encontra na Adega, qual foi o melhor e o pior ano de colheita?
Por acaso tenho isso muito bem presente. Há um caso curioso que acontece aqui e praticamente em todo Portugal: os anos ímpares são normalmente os melhores anos de colheita. Lembro-me particularmente do ano de 1995 – o meu primeiro ano a trabalhar na Adega – que foi um ano de excelência. Não tínhamos as condições que temos hoje, nem mesmo a política de valorização de uvas que aplicamos atualmente. As uvas entravam e eram escolhidas na receção e foi um ano que nos marcou devido ao fato da qualidade de toda a produção ter sido acima da média. Já em 1997 tivemos um ano mais problemático e, inclusive, com alguma podridão. Nessa época era mais comum haver esse tipo de problemas, mas hoje os viticultores associados são muito profissionalizados e desenvolveram capacidade e conhecimento que permitem contornar essas adversidades. Já a partir de 2011 posso dizer que temos tido anos muito homogéneos, em especial 2015 e 2019, devido às condições que fomos implementando ao longo destes anos.
Quantos hectares de vinha vocês possuem?
Atualmente temos cerca de 850 hectares de vinha, mas penso que em breve haverá algum incremento. Julgo que chegaremos aos 1000 hectares dentro de alguns anos. Isto porque temos de fazer um crescimento sustentado, não podemos fazer investimentos sucessivos em capacidade. Nós temos uma capacidade de armazenamento de 18 milhões de litros, o que acaba por condicionar um pouco o aumento de vinhas.
De toda a vossa produção qual o percentual de vinhos que é certificado?
Todos os nossos vinhos são certificados pela CVR Tejo. Antigamente, tínhamos o Encosta do Bairro — o nosso vinho de mesa — que era o único que não era certificado. Por sua vez, passou a ser um vinho regional e, portanto, obteve também a certificação. Por isso, 100% da nossa produção é de fato certificada. Diria que cerca de 80% da produção é regional e 20% D.O.C.
Qual é a importância da certificação?
A certificação pode ser vista de várias formas. Em primeiro lugar, realçamos o fato de estarmos inseridos numa estratégia da região. Isso permite-nos estar presentes em feiras só com vinhos regionais ou D.O.C e só assim é que faz sentido. Nós temos sido um grande parceiro da CVR porque somos a maior entidade certificadora, mas também pelo fato de termos estado sempre na linha da frente. Desde muito cedo, propusemo-nos a que os nossos vinhos de mesa passassem a vinhos regionais. Isto sempre numa estratégia concertada com a CVR para crescermos juntos. Além disso, este trabalho tem vindo a ser aceite por outros agentes económicos da região, para que o Tejo seja de fato reconhecido como uma grande região e possa atuar de forma diferente no mercado.
E o que vem por aí? Quais são as novidades?
Nós vamos criar um produto novo, um Sauvignon Blanc que estamos a vinificar há 3 anos. No entanto, este foi o ano em que realmente conseguimos fazer um Sauvignon a sério. Vinificámos na altura certa, com um perfil muito próprio da casta – muito ao estilo do Novo Mundo. Vai ser um monocasta e um produto muito interessante e associado a uma marca nova que vamos criar. Depois teremos novas colheitas nos brancos, em especial nas gamas Bridão e Private Collection. Uma das nossas apostas num futuro muito próximo será, também, o lançamento de um licoroso de Fernão Pires com estágio em barrica. Iremos lançar, ainda, uma nova marca com um branco Sauvignon Blanc e um blend de Touriga e Cabernet com estágio em barrica de carvalho francês.
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