Foi em um dia de abril que a história do vinho neste país começou, quando os portugueses chegaram e, entre veludos e espadas, lá estava ele.
Usado como forma de lastro para os navios e incentivo para a tripulação (afinal, ninguém em sã consciência embarcaria em um navio rumo ao desconhecido sem estar com algum grau de álcool no sangue), pode-se dizer que o primeiro contato do vinho com terras brasileiras foi nas embarcações de Pedro Álvares Cabral.
Em 1531, chega Martim Afonso de Souza a São Vicente, acompanhado do futuro fundador da Santa Casa de Santos, o primeiro hospital das Américas, e da própria cidade de Santos, Brás Cubas. Este trouxe consigo, diretamente de Portugal, algumas mudas de videira.
Sua primeira tentativa de plantá-las foi em Cubatão, mas não deu certo por conta do solo e clima muito úmidos.
Insistente, com as videiras restantes, seguiu para o Planalto de Piratininga e criou o primeiro vinhedo brasileiro onde hoje fica o Largo da Concórdia, no Brás. Foi apenas uma questão de tempo até que outros produtores começassem a surgir nas regiões do Tatuapé, Penha e São Miguel. Mas infelizmente a descoberta de ouro em Minas Gerais fez com que muitos abandonassem a atividade agrícola.
Alguns anos depois a atividade foi retomada, mas surgiu um novo entrave. Em 1756 o Marquês de Pombal funda em Portugal a Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro e não apenas proíbe a produção de vinhos no Brasil, como obriga o país a comprar todo o excedente de produção portuguesa. Isso só muda com a chegada da família real em 1808 que, sem Portugal para fornecer vinhos, libera novamente a produção local.
Por volta de 1875, já no reinado de D. Pedro II, com o despovoamento do Rio Grande do Sul por conta da Guerra do Paraguai, inicia-se um movimento estratégico de incentivo à imigração, loteando terras do império na região para imigrantes alemães e italianos. Esses lotes logo se tornam locais de grandes produções de vinhos.
O século XX
Chega um novo século e uma nova história se inicia. Em Portugal nascem João, Emília e Antonio.
Esses três novos personagens ainda não sabem, mas serão responsáveis por vir ao Brasil e trazer o hábito de vinhos para um casal que, mais de 100 anos depois, criaria o Viva o Vinho.
João Tavares e Emília da Conceição Tavares são meus avós. Nasceram em uma pequena aldeia de Portugal, Sever do Vouga, e de lá vieram para criar seus filhos em Santos em 1928.
Foi uma viagem dura, eles perderam um filho bebê no navio, Alexandre, tiveram de lutar muito, trabalhar demais para criar e dar estudo e educação para os seis filhos, três homens e três mulheres. Acreditavam que sem estudo os filhos nada conseguiriam. Os homens foram educados contabilistas e as mulheres enfermeiras.
O caçula era meu pai, Antônio Benedito Tavares, que viria a se casar com Walkíria, uma garota inteligente, que sabia o que queria. Sou o primogênito de uma família de quatro meninos. Apesar de nascido no Brasil, ele era muito mais português do que brasileiro.
Antonio Gonçalves Pacheco é o pai da Renata. Nascido em outra pequena vila portuguesa, Cortiçô da Serra, vivia na zona rural, em uma casa de pedra rústica. Seus pais, Antonio e Maria, já tinham estado no Brasil na década de 20 e retornaram à Portugal quando bateu a saudade. Por conta disso, o pai da Renata tinha um irmão brasileiro, mais velho que ele, que faleceu em Portugal. A vida dura e a falta de recursos fez com que a família viesse novamente ao Brasil em busca de oportunidades.
Chegaram a Santos em 1950 e moraram por alguns anos no mesmo bairro dos meus avós, no Marapé, próximo a onde hoje é a Vila Belmiro.
Adulto, se casou com uma filha de libaneses, Maria José, uma moça elegante e educada do bairro do Belenzinho. Da união nasceu a Renata, também filha primogênita de três meninas.
Trabalhou muito, chegou a ter três empregos e ficou meses afastado da família por compromissos profissionais, mas sempre preocupado em “não deixar faltar nada”. (Não sei dizer quantas vezes ouvi essa frase na vida).
Histórias de todo imigrante: luta, abnegação e muita dedicação, que tiveram a companhia do vinho. Minha avó sempre tinha uma garrafa aberta para acompanhar as refeições. Meu sogro tem o hábito de consumir devagar uma garrafa ao longo da semana e abrir os melhores rótulos nos almoços de domingo.
São portugueses, fortes, às vezes duros, e extremamente dedicados aos seus filhos e netos.
O Brasil vinícola que eles encontraram já contava com cooperativas no Rio Grande do Sul. Muitas famílias produziam o próprio vinho, dando seus sobrenomes a empresas como Miolo, Salton, Don Giovanni, entre outras. O mercado fechado e o alto custo dificultava o acesso a produtos europeus.
Mas os vinhos brasileiros não ficaram apenas na serra gaúcha. Na fronteira com o Uruguai começaram a surgir produtores na região da Campanha, onde hoje temos potentes Tannats, e em meados dos anos 1970 começou a plantação de uvas de mesa no Vale do São Francisco e descobriu-se que era uma boa terra para vinhos, baseados inicialmente na Moscato, que faz vinhos doces incríveis, e na Syrah.
Nessa época, eu e a Renata éramos crianças, ela em Americana, interior de São Paulo, e eu em Santos. Apesar da distância de 226 km, com pais portugueses, nossa criação guarda enormes semelhanças.
Tínhamos pais severos, muito exigentes. O estudo e a educação eram extremamente valorizados e sempre éramos lembrados de que se não trabalhávamos, não havia desculpa para uma nota baixa. Coisa de português.
Chegando à década de 1980, na região da Campanha Gaúcha há o desenvolvimento de novas tecnologias, próprias para o terreno plano da região, diminuindo os custos de produção e modernizando as instalações. Investe-se também na formação de enólogos, pois sem eles não há tecnologia que resolva.
Surgem marcas que fizeram história, como Forestier, Almadén e Chateau Duvalier, e o consumo de vinhos no Brasil dá sinais de crescimento.
Porém é impossível falar dessa época sem citar a invasão dos vinhos alemães brancos, doces, os “vinhos da garrafa azul”. Honestamente, eu nunca experimentei, mas eles serviram de passo inicial para que o brasileiro começasse a se interessar por vinhos. É um caminho natural: todos que entram nesse mundo começam por aí, vinhos mais doces, para depois migrar para vinhos mais sofisticados.
Todo esse movimento acontecendo e eu estava mais preocupado em me formar como pianista e prestar vestibular. A Renata estava iniciando o ensino médio.
Para mim, o vinho surgiu quando cheguei aos 18 anos. Por meio do meu pai, comecei a experimentar alguns vinhos, muitos portugueses, claro. Com o calor de Santos, era comum a companhia para o bacalhau do domingo ser um bom vinho verde branco gelado. Minha mãe adorava o Calamares.
Nos tintos, íamos para o Dão, com seus vinhos mais encorpados, mas na época eu ainda não tinha a preocupação em aprender tanto assim, estava mais focado em estilos.
A Renata começou um pouco mais tarde. Ela conta que nunca se preocupou muito com uvas, regiões, tipos, bebia o que o pai oferecia no almoço de domingo. Somente quando se casou comigo em 2013 é que entrou de cabeça – e alma – nesse mundo.
Mas aí já é assunto para o próximo episódio dessa saga, quando falaremos mais da história do vinho brasileiro a partir da década de 1990, da reviravolta no cenário nacional, do aprimoramento da indústria vinícola portuguesa e da nossa história juntos com a criação do Viva o Vinho.