Nesta semana retomamos a nossa seção Conversa com o Enólogo com uma longa entrevista com um enólogo que tem também uma longa história na Enologia: Luís Cabral de Almeida. O mais velho de uma família de oito irmãos — cinco deles enólogos, além da sua esposa — Luís está hoje à frente da direção de Enologia da Sogrape no Alentejo, com os projetos Herdade do Peso, de 1991, e Quinta do Centro — uma nova aquisição do grupo Sogrape em Portalegre.
Natural de Viseu, Luís é bem-humorado ao falar da ligação da família com a Enologia: “Não sei se é o vinho que está dentro de nós ou somos nós que estamos dentro do vinho”, brinca.
Leia aqui a entrevista completa com Luís Cabral de Almeida e conheça mais sobre a sua história.
Como começou seu percurso na Enologia?
A verdade é que eu sempre gostei muito do campo e, depois, também porque o vinho sempre foi uma referência muito grande para o meu pai. Apesar de ter o curso de Direito, ele dava muita importância ao vinho. Sempre que havia gente lá em casa, havia uma garrafa por abrir e uma história para contar. Eu dizia sempre que para o meu pai era muito mais importante nós sabermos abrir uma garrafa de vinho do que aprendermos a andar de bicicleta. Acho que isso também acabou por me influenciar. O meu avô foi um dos fundadores da vinícola do Super Dão e que mais tarde foi vendida pela minha avó à Sogrape. Portanto, sempre existiu uma relação muito grande com o vinho. Mas eu acho que, no fundo, foi a paixão pelo campo e a influência do meu pai que me fizeram entrar neste mundo.
Como foi a sua formação?
Eu estudei agronomia na UTAD e depois especializei-me na área. Logo após terminar o curso, decidi tirar uma pós-graduação na universidade australiana Charles Sturt em Enologia. No entanto, trabalhei sempre em viticultura e gosto bastante da área, apesar de ser enólogo.
Como foi o seu percurso pelo mundo do vinho?
Comecei o meu percurso em Portugal, na região do Douro. Depois, em 1991, fui convidado para ir para a Quinta dos Carvalhais, no Dão, onde estive a trabalhar durante cerca de 14 anos. Fiz, portanto, 14 vindimas lá e tive a oportunidade de trabalhar com o José Maria Soares Franco e com o Manuel Vieira. No ano de 2004, a família Guedes me desafiou a ir trabalhar em um dos seus projetos na região de Mendoza. Decidi aceitar e peguei na família e na mobília toda e lá fomos nós. Fomos muito bem recebidos e foi uma experiência realmente fantástica durante 8 anos.
Quando voltou para Portugal?
Como qualquer português, a saudade começou a apertar e decidi que estava na hora de voltar. Foi, então, que surgiu a oportunidade de começar a desenvolver o projeto da Sogrape, no Alentejo. De 2012 até hoje, tivemos grandes conquistas e o reconhecimento é notório. Não só a nível de qualidade, mas principalmente a nível do consumidor. Em 6 anos, conseguimos passar de 30 mil caixas para 150 mil caixas e aumentámos o preço médio. Passámos de 4 produtos enológicos para 14. Estamos com um investimento de quase 5 milhões de euros em uma adega nova que esperamos estar pronta na altura da vindima. E vamos plantar, também, mais 42 hectares de vinha, dos quais 12 serão para voltarmos ao processo tradicional. Isto porque, na enologia e na viticultura, procuramos sempre ir buscar o passado para podermos construir o futuro. Além disso, vamos plantar 10 hectares de Goblet – uma videira individual que fica a cerca de 50 cm do solo – que é muito tradicional no Alentejo e nas regiões mais quentes.
Qual o objetivo de todo esse investimento?
Acreditamos que vamos fazer vinhos diferentes e aumentar sua complexidade. Esse é o grande desafio que temos na Herdade no Peso e não só. A Sogrape também comprou há cerca de dois anos uma propriedade em Portalegre, onde já estávamos a vinificar desde 2018 e acreditamos que vamos aumentar e diversificar a nossa oferta. O Alentejo é uma das regiões que possui grande potencial devido à sua variedade de solos. Uma das preocupações que tenho como enólogo é engarrafar vinhos com carácter e que tenham um grande sentido de lugar. Acho que esse deve ser o papel da enologia e devemos trabalhar para alcançar.
Quais as principais diferenças entre produzir um vinho no Velho e no Novo Mundo?
Essa é uma pergunta particularmente interessante. O vinho é um produto cultural e é transmitido de geração em geração, com uma carga emocional muito forte. Por essa razão se torna muito polêmico discutir aquilo que é o Novo e o Velho Mundo. Eu nasci e fui criado em Viseu – região do Dão – e o lado da família da minha mãe é todo do Douro. Não podia haver duas regiões mais tradicionais, fechadas e protetoras em Portugal do que essas. Mas a verdade é que eu gosto muito do Novo Mundo também e nunca esquecerei o meu tempo em Mendoza. Todas as semanas tínhamos almoços entre enólogos, onde partilhávamos tudo. Se perguntarmos a um europeu algo sobre vinho, a resposta nunca será tão direta em comparação com o Novo Mundo – onde há uma partilha muito maior. Hoje em dia estou no Alentejo – região que considero o Novo Mundo de Portugal – e diria que o ideal seria sempre o meio termo. Acho que a abertura no negócio de vinho é muito importante, mas a história e a tradição também têm a sua razão de existir. O conhecimento que é passado de geração em geração é algo muito importante neste meio e acaba por enriquecer os próprios vinhos. E o vinho é o resultado do conhecimento e também do saber empírico e sensibilidade e observação do “cozinheiro”.
Quais as castas que mais gosta de trabalhar?
O meu percurso foi muito marcado pela Touriga Nacional e cresci imenso com essa casta. Lembro-me de há 30 anos ela ser conhecida como a casta do contrarrótulo, pois existia somente 4% em Portugal. Posso dizer, também, que adorei trabalhar com a casta Malbec. É uma casta fantástica e com a qual fiz milhões de garrafas de variadíssimos níveis. Mas hoje em dia estou apaixonado pela Alicante Bouschet. É uma casta que tem uma adaptação incrível. Costumo dizer que a Alicante Bouschet está para o Alentejo como a Malbec está para Mendoza. São ambas castas de origem francesa, mas que se expressam de forma maravilhosa em outros locais. A Alicante quase não existe em França, mas no Alentejo revela todo o seu esplendor.
E qual o estilo de vinho que gosta mais de produzir?
Não sei se tenho um estilo de vinho específico, mas há um esforço que faço permanentemente. Tento respeitar ao máximo o vinho com o mínimo de intervenção enológica possível. Mesmo as remontagens são cada vez mais suaves e são feitas com menor frequência. Hoje em dia, uma remontagem de um vinho tinto serve somente para homogeneizar temperaturas e leveduras. A extração da uva é que é importante. O dia de vindima é das decisões mais difíceis que temos, pois é esse momento que vai definir o estilo. É o momento que vai contribuir para que consigamos obter um vinho com um estilo mais fresco, mais ácido e menos maduro – ou o contrário. Gostava que o consumidor começasse a perceber que os nossos vinhos são vinhos com carácter e com sentido de lugar. Gostava muito que as pessoas soubessem reconhecer um vinho pela origem e pelo produtor. Queremos vinhos com mais carácter e que sejam o reflexo da sua origem.
Isso significa usar menos madeira?
Isso implica pouca intervenção e vinhos com menos madeira. Na verdade, Portugal não conhecia barricas. Somente depois do 25 de abril se começou a utilizar as barricas como forma de nos voltarmos a reposicionar no mercado. Antes disso, qualquer vinho em Portugal era guardado em tonéis. Por isso, acho que estamos numa fase em que estamos em busca de identidade e a regressar ao passado.
Tem alguma história curiosa da sua relação com os vinhos?
Penso que a minha história seja um pouco ao contrário, pois não posso dissociar nenhuma fase da minha vida do vinho. Desde sempre que estive ligado a este mundo. Conheci a minha esposa durante uma vindima e só pudemos marcar o casamento depois de ter os vinhos com a maloláctica toda feita. Os meus dois filhos mais velhos nasceram na altura de duas vindimas que fui fazer a Mendoza. E toda a minha família está ligada ao mundo dos vinhos. Por isso, posso dizer que os vinhos fazem parte da minha história.
Com uma família de tantos enólogos, como são as reuniões de família?
É muito interessante. Quando o meu pai ainda era vivo, havia momentos em que estávamos todos à mesa e ele dizia “Agora estão proibidos de falar de vinho, agora é só beber”. Era muito engraçado. Mas optámos por deixar de falar e fazer comentários, agora limitamo-nos a bebê-los. O vinho está tão presente nas nossas vidas que já só queremos desfrutar dos momentos em que estamos todos juntos. Com a minha esposa, também chegámos a acordo e após uma certa hora deixamos de falar de vinho. No nosso caso, altera toda a vida familiar levarmos o vinho para a cama….
Qual é sua maior fonte de inspiração?
Hoje em dia é sentir o que me rodeia. É importante chegarmos a um lugar e sentirmos as pessoas, a natureza, a história e entender os hábitos e os costumes. É preciso tudo isso para depois colocarmos na garrafa. Por isso, digo que a minha fonte de inspiração é contemplar toda a paisagem e cultura que me rodeiam. Precisamos absorver todos os elementos para podermos engarrafar momentos e características do local onde trabalhamos.
Qual o seu conselho para quem está entrando no mundo da enologia?
Ao contrário do que possa parecer, a enologia tem um lado muito forte que exige trabalho e dedicação. Diria que o requisito obrigatório é ter paixão. A enologia não é só falar com jornalistas ou provar vinhos, há um backoffice muito pesado. Temos de trabalhar e saber esperar, pois esta é uma profissão que não apresenta resultados rápidos.
Tem alguma sugestão de harmonização curiosa?
Toda a gente fala no Mateus Rosé com uma imagem de piscina e muito levezinho, mas para mim ele vai extremamente bem com morcela frita e com chouriço assado na brasa. É completamente o oposto, mas é simplesmente delicioso.
E o que vem por aí? Quais são as novidades?
Até ao final do ano haverá o lançamento do Essência do Peso 2018. É um Alicante Bouschet produzido 100% em toneis, que realmente representa a pureza da nossa propriedade, a Herdade do Peso. Acho que está um vinho muito afinado e estamos todos muito contentes com ele. É um vinho feito com o mínimo de intervenção e retirado diretamente dos talhões. Diria que esse é, sem dúvida, um vinho de lugar. Também estamos muito contentes com o nosso projeto de Portalegre e engarrafámos há pouco tempo um vinho branco da Serra de São Mamede, de vinhas velhas. É um vinho de 2018 e só foi engarrafado recentemente. O tempo é muito importante no nosso negócio, por isso vamos esperar que ele cresça um pouco mais.
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