Natural de Santarém, Hugo Mendes não é enólogo de formação, mas sim por paixão. Desde criança seu sonho era ser cientista e descobrir a cura para o cancro, mas a vida decidiu encaminhá-lo no sentido da enologia. Os vinhos não passavam apenas de um hobby, mas aliados à ciência e à vontade de aprender, tornaram Hugo no enólogo que conhecemos atualmente. Até há pouco tempo, pertencia à equipa da Quinta da Murta, mas passou a dedicar-se inteiramente ao seu projeto pessoal.
Estudou Engenharia Biotecnológica, mas foi depois de um estágio na Quinta da Alorna que descobriu que o mundo dos vinhos era mais interessante do que alguma vez pensara. Nunca deixando a ciência de lado, hoje — passados 14 anos — lidera o seu projeto pessoal com uma abordagem única e visionária, sempre contando com a ajuda dos seus maiores fãs para o concretizar. Hugo conta-nos que seu estilo é ‘interpretativo’ e procura sempre fazer um vinho diferente, mas mantendo-se fiel à sua matriz.
Acompanhe toda a história por detrás de Hugo Mendes, o seu vinho Lisboa e outras criações.
Como você começou na enologia?
Com 18 anos já comprava revistas sobre vinhos e me tentava informar, mas tudo o que sempre quis era ser cientista. Sempre fui uma pessoa que gosta de seguir suas paixões e sabia que a minha vida ia estar ligada à ciência. Quando fui estudar para a universidade tirar Engenharia Biotecnológica, o meu objetivo era descobrir a cura para o cancro e queria trabalhar na área da investigação médica. O vinho para mim não era uma coisa séria. Acabei por fazer uma vindima na Quinta da Alorna que me deixou completamente apaixonado e nesse estágio percebi como estava o setor e que poderia ser muito interessante trabalhar nele. Acabei por aceitar um cargo na Quinta da Murta, em Bucelas, no qual permaneci até ao mês passado. Na altura eles precisavam de alguém que soubesse fazer análises e eu aceitei. Fui estudando, falando com colegas da área, procurei saber e acabei por me tornar enólogo assim. No fundo, não tenho nenhuma formação de enologia, apenas estudei muito e continuo a estudar.
E hoje você está trabalhando em que projetos?
No mês passado acabei o Quinta da Murta que foi o meu projeto mais longo e com o qual aprendi a ser enólogo. Hoje em dia, estou mais dedicado ao meu projeto pessoal, o “Hugo Mendes”, que comecei a desenvolver em 2016. É um projeto multifacetado e com uma abordagem diferente que assenta muito não só no online, mas também na relação direta com o consumidor. Fiz o meu primeiro crowdfunding para financiar um vinho em Portugal e estabeleci essa relação muito próxima com o consumidor. Para além disso, tenho mais duas consultorias — a Quinta das Carrafouchas, na região de Lisboa, e Vale das Areias, que fica numa zona mais perto de Alenquer.
Como foi esse Crowdfunding?
Eu fiz a vindima do Lisboa em 2016. Estava numa fase em que psicologicamente precisava criar alguma coisa nova. Felizmente arranjei uma adega precisamente no sítio onde comprava a uva e já tinha uma ideia de como queria fazer o vinho. Apenas tive de comprar umas cubas pequeninas para ter o vinho que precisava e fiz o vinho lá. Depois, quando chegou a altura de engarrafar, não tinha dinheiro para o fazer. Felizmente tinha um amigo – do projeto Adegga – que já há alguns anos me dizia que devia fazer um projeto de pré-venda e vender o vinho antes de o ter em mão. Nessa altura achei que fosse uma boa ideia fazer uma espécie de crowdfunding em que vendia o vinho às pessoas a um preço mais interessante – metade do preço do mercado – uma vez que o vinho já se encontrava nas cubas. Como me pagaram o vinho antecipadamente, consegui com esse dinheiro fazer o enchimento. Propus-me vender cerca de 800 garrafas, pois era o que eu precisava para financiar o projeto, e acabei vendendo 877. Passei de 2.300 garrafas em 2016 para 8.000 e, em 2019, se tudo correr bem, chego perto das 20.000 garrafas, com seis referências. Tudo sempre com o apoio do consumidor final.
Qual é o seu objetivo com esse projeto?
Eu não criei este projeto em nome próprio para ser o meu único emprego, criei para que fosse uma espécie de laboratório sempre pequenino e com lotes de 1.000 a 3.000 garrafas que me permitissem experimentar tudo o que eu quisesse, ou seja, dar-me uma liberdade que eu nunca conseguiria ter nas quintas onde estava a trabalhar porque os vinhos já estavam definidos. Há uma fase em que estamos a desenvolver um perfil e conseguimos trabalhá-lo muito, mas quando esse perfil está definido e é aceite esse vinho passa a ser uma receita. Eu quero estar sempre a desenvolver vinhos novos e então criei este projeto nesta perspetiva.
Você vende 100% da sua produção pela internet?
Enquanto estive a desenvolver o vinho e os perfis não quis enviar o vinho para o canal profissional antes de ter o perfil certo. Queria ter a certeza que o vinho que vai dentro da garrafa é mesmo o que eu quero e que representa melhor o que procuro. Quando lanço um vinho e encontro logo um distribuidor, acontece que o próprio negócio vai moldando o vinho. Nos dois primeiros anos, então, decidi excluir essa hipótese e vendi diretamente – 90% pela internet e o resto de forma orgânica a pessoas que conhecia ou alguns restaurantes.
A partir da colheita de 2018 já procurei distribuidores que me vendiam o vinho. Neste momento tenho três distribuidores, nas zonas norte, centro e sul. São eles os responsáveis por toda a parte da restauração. Eu continuo a vender diretamente ao consumidor. Neste momento, em pré-vendas realizo 40% através da internet e o resto através do canal profissional. Agora quero aumentar a exportação.
Qual é o seu estilo de vinho?
Isso é uma boa pergunta. Não sei se tenho um estilo de vinho. A partir do momento em que tive a minha primeira consultoria, a minha preocupação foi que os vinhos que eu tivesse em mãos não fossem minimamente semelhantes aos que eu faria noutro lado. Procurei sempre fazer diferente, por isso se eu tiver um estilo terei que dizer que é um estilo interpretativo. Ou seja, chego a um sítio e percebo o que lá está plantado e tento perceber que tipo de vinhos podem sair dali. Gosto de vinhos com muita frescura e com boa acidez, gosto de apanhar as uvas um bocadinho mais cedo do que é normal e gosto de vinhos com longevidade. Isso depois obviamente que cria um estilo e uma espécie de assinatura que está em todos os vinhos. Mas não sei se tenho um vinho que me defina.
Tem alguma casta que você gosta mais de trabalhar?
Não. Eu gosto muito de lotes, acho que somos um país de lotes. Somos um país que se pode distinguir pelos seus lotes e pela sua qualidade. Temos muitas castas e para mim é quase um absurdo escolher uma. Eu gosto da ideia do blend, de várias castas juntas. Se tivermos muitas coisas boas misturadas, elas funcionam melhor do que sozinhas. Por outro lado, trabalhei a casta Arinto durante 14 anos e é a casta que conheço melhor.
E de uma safra para a outra, você muda também o seu vinho?
Neste momento convivo com duas pessoas dentro de mim – o enólogo e o produtor. Antes era apenas enólogo e queria fazer todos os anos o melhor vinho possível, mas agora existe o produtor que diz que o consumidor deve ser respeitado. Faz-me confusão que o consumidor que prova um determinado vinho num ano e prove no ano a seguir, no terceiro ano já tem uma noção do que ele vai ser. Há coisas que variam de ano para ano, mas há algo que se mantém e que é o que cria a identidade dos vinhos. A isso eu chamo de matriz dos vinhos. Em 2016 eu criei algo que não sabia bem o que era, em 2017 fiz algumas alterações e assim sucessivamente. O meu vinho no ano que vem provavelmente irá ficar com o seu perfil fechado. Isto quer dizer que entre colheitas existem de facto alterações, mas depois compenso isso. Essencialmente, gosto que haja uma matriz que se mantenha de ano para ano.
Os seus vinhos são da região de Lisboa…
Sim, de momento só tenho vinhos da região de Lisboa. Este ano fui fazer vinhos ao Douro e penso que ainda irão demorar cerca de dois anos a sair para o mercado. Pretendo fazer vinhos também no Dão, talvez na Bairrada por causa da enologia de espumantes e no Tejo que é a minha casa.
E se você tivesse de escolher uma região fora de Portugal, qual você escolheria?
Excelente pergunta… Eu normalmente funciono ao contrário, gosto de me adaptar aos desafios que me fazem. Há regiões e há países onde é mais fácil produzir um vinho bom e eu tenho essa experiência. Este ano fui até ao Douro e estou maravilhado com os vinhos que saíram de lá. Há uma qualidade inata da própria região que ajuda muito e nesse sentido, obviamente, que gostava sempre de produzir algo na Borgonha ou em Champagne porque sou um apaixonado por vinhos brancos e pelo estilo francês. Por outro lado, não era um desafio suficiente porque há aquela ideia de que toda a gente consegue fazer um vinho bom. O desafio é produzir vinho num sítio que me diriam ser impossível de fazer. Já esteve quase para acontecer no Brasil ou em Angola. Para ser honesto, não tenho nenhum país onde sonhasse fazer vinho. Sonho sim, em fazer vinhos bons e expressivos. Sou muito nacionalista nesse aspeto, acho que há tanto para fazer em Portugal que ainda não sonho em fazer fora.
Durante o processo de produção de um vinho, qual é a decisão mais importante para você? E qual a mais difícil de ser tomada?
Ao fim destes anos todos, há coisas que entram numa certa rotina. Esta forma que eu tenho de produzir vinhos acaba por me proteger um pouco. Quando chega a altura de engarrafar, tenho a certeza que tomei as decisões certas. Há fases que considero cruciais, como o momento de apanhar a uva e a escolha do dia. Quando e como fazer os lotes também é fundamental. Mas as coisas acontecem de forma muito natural…
Dos vinhos que você já produziu, qual deles ficou marcado na sua memória?
Talvez o primeiro espumante que ajudei a produzir — o Quinta da Murta Espumante 2006 —, porque eu não sabia nada de espumantes. Eles já tinham alguma tradição de vinhos e os espumantes já possuíam boas críticas. Foi um vinho muito importante para o meu percurso enquanto enólogo. Outro deles, talvez o Myrtus Reserva 2008, pois foi o primeiro vinho em que me senti um enólogo. Depois, obviamente, o Hugo Mendes Lisboa 2016 por ter sido o meu primeiro vinho.
E quais serão suas próximas novidades? Que lançamentos podemos esperar?
No meu projeto, seguramente, podem contar com os brancos que já têm saído e pelo menos dois tintos – um mais velho e um mais novo. Vou fazer, também, um espumante que deve sair daqui a três anos. Tenho, ainda, os vinhos do Douro que deverão ser lançados. Mas tenho ainda alguns projetos em mente. Vou lançar um podcast, num formato de espécie de talk-show sobre vinho com alguns convidados que tenham histórias para contar. E talvez saia um livro em breve, quem sabe…
Estamos ansiosos para provar, ouvir e ler todas essas novidades!
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